TravelVince News #03
Caminhando pela cidade, lendo em casa, escrevendo aqui | Walking around town, reading at home, writing here.
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The English version starts at the picture where visited the World Trade Center in New York.
🇧🇷 Minhas aventuras atuais têm sido longas caminhadas por Curitiba, que em chinês se escreve 库里蒂巴. Saio bem cedo, quando não preciso dividir as ruas com muita gente. Ou sigo pelas ruas que ninguém usa. Visto as minhas máscaras, plugo o fone de ouvido e clico numa playlist de podcasts recentes. Lá vou eu, desviando dos desmascarados e observando as folhas do outono enquanto mergulho em entretenimento e informação. A via do Expresso que serpenteia pela Ecoville está magnífica com os plátanos amarelos e vermelhos avisando que chegou o outono. Recomendo a caminhada antes da alopecia invernal.
Recentemente, escutando o último episódio do Huberman Lab Podcast (falei dele na newsletter anterior), voei alto imaginando as mais variadas variantes que nos fazem ser quem somos. Ele falou sobre hormônios, aminoácidos e os processos biológicos que fazem um embrião desenvolver características sexuais. Algo que aprendi nas aulas de ciências da 7ª série, que existem apenas os fenótipos XX e XY, na verdade nunca foi óbvio, nem verdadeiro. Há, como em tudo na natureza, vários tons de cinza. Mas o que me fascinou foi descobrir que várias reações químicas no útero afetam o desejo sexual do feto no futuro. É mais ou menos como dizer que se a mãe tomar sorvete de pistache em dia de lua cheia e dormir de lado o feto pode desenvolver preferências sexuais pelo sexo masculino. Caso ela tome sol ao meio dia e use água de colônia com alfazema, o feto gostará do sexo feminino. A culpa é sempre da mãe, kkkk.
Nos nove meses em que, envolto em placenta, ocupei o útero da minha mãe, era esperado pela família com dois nomes: Carime ou Vicente. Não havia ecografia nos anos 1970 e os enxovais de bebê eram multicoloridos. O grande segredo era revelado só no dia L, dia da luz. Eu nasci de saco roxo, dizem que significa algo, mas nunca dei bola para essas tolices. A placenta foi jogada fora e hoje não tenho células tronco de reserva. Fui para casa no meu tiptop amarelo e ganhei o nome do avô italiano e não o da bisavó libanesa. Mas a genética é mais forte do que a gente. Sou 14% italiano e 21% libanês, ou seja, o amor ao quibe prevaleceu. Vou realmente muito longe em minhas divagações e caminhadas, não é mesmo?
Outro podcast que me acompanha e instiga é o History of Ideas, do David Runciman, professor em Cambridge. Cada episódio trata de um conceito da sociedade baseado na opinião de uma pensadora ou pensador. São temas meio densos e complexos como "Rousseau e a Desigualdade" ou "Rosa Luxemburgo e a Revolução". Me sinto muitas vezes tão pequeno em meio a tanto conhecimento. Mas poder escutar e ser tocado por essas ideias já basta. O que sempre me pergunto é: ok, e o que fazer com tudo isso que agora sei? Não tem como "dessaber", assim como não é possível "desver". Viu, tá visto.
Falando em "viu, tá visto" caí no buraco negro do último documentário do Adam Curtis para a BBC chamado "Can't Get You Out of My Head", baseado largamente no livro "Realismo Capitalista", de Mark Fisher (recomendado no podcast Expresso Ilustrada, da Folha de SP). São seis episódios que tricotam os eventos do pós-guerra para justificar o estado atual do mundo, principalmente os entraves políticos e econômicos. É horrível. Assisti assombrado a todos no YouTube menos o episódio 5 , que foi tirado do ar. Uma amiga casada com um documentarista da BBC falou que não via porque tinha medo de enlouquecer trancada em casa com todas aquelas informações. Sugeriu-me ver "Emily in Paris" em repeat. Falando nisso, recomendo um filme francês excelente no Netflix, o “Madame Claude”. Adoraria ter sido garota de programa da Claude em Paris nos anos 1960.
Sabia que já ganhei dinheiro com sexo? Estava em Taipé, capital de Taiwan. Conheci um piloto da EVA Air que veio me ver no hotel. Ele tinha umas fantasias interessantes e eu, que sou bem aberto a fantasias interessantes, me deixei levar. Primeiro ele gostava de ficar fumando um cachimbo e jogando a fumaça pelo meu corpo enquanto se olhava no espelho. Tudo bem. Eu olhava no espelho e tinha vontade de rir com aquela defumação. Depois falou que gostaria de me pagar, que se sentiria melhor se a transação fosse também monetária. Falei que não tinha problema nenhum. Ele ofereceu 150 dólares. Para mim, até grátis rolava, então aceitei para deixá-lo tranquilo. Meu treinamento de gueixa da Emirates foi excelente. O engraçado é que, pós-coito, ele tinha só 120 dólares em dinheiro local. Disse que iria no caixa automático tirar o que faltava e que voltaria. Esperei ansiosamente pelos 30 dólares faltantes e me senti ganancioso. Não voltou. Com os 120 dólares, comprei um par de tênis de Crossfit. Nunca mais voei de EVA Air.
Como hoje estou amarrando um assunto no outro e estamos no Oriente, lembrei de um dos livros que estou lendo, da belga Amélie Nothomb. Ela nasceu no Japão e com cinco anos foi morar em Pequim, transferida com a família de diplomatas. A visão que ela tem da China dos anos 1970, do ponto de vista de uma criança belga que jurava ser japonesa é hilariante. Depois de Pequim a família vai para Nova York e a descrição da chegada dela na cidade me lembra as emoções que eu senti na primeira vez em que vi o skyline de Manhattan, com 12 anos. "O importante é que emoções eu vivi", como cantaria o Rei. Os romances de Nothomb são, na verdade, longos contos ou novelas. Esse chama-se "Biografia da Fome". Recomendo tudo o que ela escreve. Tem uma entrevista linda com ela em um podcast da Elle Magazine chamado “Une Nuit en Librairie”.
Leio Nothomb junto com o norueguês Karl Ove Knausgard, que também verte sua vida privada nas páginas. Pode ser um recurso interessante contar mais sobre as minhas aventuras e experiências romantizadas e ficcionalizadas, bien sûr, para ficarem ainda mais picantes e deliciosas. Prometo ser mais Nothomb do que Knausgard, já que estou com ele há 23 páginas numa divagação sem fim, trancado num apartamento de Oslo, enquanto que com ela já fui para Nova York, Bangladesh e agora estamos novamente no Japão, escutando Ryuichi Sakamoto. Já pensei inclusive na epígrafe do livro: um pedaço da música "La Chanson de Ziggy", do musical francês Starmania, que acompanhou os dias esquizofrênicos de minha primeira grande paixão.
"Je vais leur raconter ma vie. Est-ce que tu crois que ça suffit, ta vie? Mais ma vie, tu la connais pas". (Vou contar-lhes minha vida. Você acha suficiente, tua vida? Mas minha vida, você não a conhece). Oh… mal posso esperar!
Na minha suruba literária – sou leitor de vários escritores, homem de muitos amores – também está presente a diva brasileira Clarice Lispector. Adoro espalhar os livros no sofá e na cama e fazer um ménage entre eles. Um pequeno texto dela de ontem à noite intitulado "Se eu fosse eu" me arrebatou e divido com você já em tom de despedida.
Quando não sei onde guardei um papel importante e a procura se revela inútil, pergunto-me: se eu fosse eu e tivesse um papel importante para guardar, que lugar escolheria? Às vezes dá certo. Mas muitas vezes fico tão pressionada pela frase "se eu fosse eu", que a procura do papel se torna secundária, e começo a pensar. Diria melhor, sentir.
E não me sinto bem. Experimente: se você fosse você, como seria o que faria? Logo de início se sente um constrangimento: a mentira em que nos acomodamos acabou de ser levemente locomovida do lugar onde se acomodara. No entanto, já li biografias de pessoas que de repente passavam a ser elas mesmas, e mudaram inteiramente de vida. Acho que se eu fosse realmente eu, os amigos não me cumprimentariam na rua porque até minha fisionomia teria mudado. Como? Não sei.
Metade das coisas que eu faria se eu fosse eu, não posso contar. Acho, por exemplo, que por um certo motivo eu terminaria presa na cadeia. E se eu fosse eu daria tudo o que é meu, e confiaria o futuro ao futuro.
"Se eu fosse eu" parece representar o nosso maior perigo de viver, parece a entrada nova do desconhecido. No entanto, tenho a intuição de que, passadas as primeiras chamadas loucuras da festa que seria, teríamos enfim a experiência do mundo. Bem sei, experimentaríamos enfim em pleno a dor do mundo. E a nossa dor, aquela que aprendemos a não sentir. Mas também seríamos por vezes tomados de um êxtase de alegria pura e legítima que mal posso adivinhar. Não, acho que já estou de algum modo adivinhando por que me senti sorrindo e também senti uma espécie de pudor que se tem diante do que é grande demais (extraído de Clarice Lispector - Todas as Crônicas - Ed. Rocco 2018).
Obrigado pela leitura desta missiva. Se ainda não cansou, tem um mini-conto novo da aula de escrita chamado “Andarilho” no TravelVince. Se puder assinar e compartilhar a newsletter, agradeço. Já estou com uma lista de confissões para a próxima. Se cuide e até breve.
Vicente
🇬🇧 Long walks around Curitiba have been most of my adventures lately. I leave early in the morning not to bump into too many people on the way. Sometimes I just walk over empty neighborhoods. I wear my double-mask, plug in the earphones, and push play on the playlist of my favorite podcasts. Off I go, dodging the unmasked and observing the autumn leaves deep in thought, entertainment and information. There is a special bus lane in Ecoville where the trees have gone yellow and red, announcing the new season. I highly recommend the walk before they go bald in winter.
Listening to a recent Huberman Lab Podcast (mentioned in the previous newsletter) I wondered about the many biological variations that make us who we are. The show mentioned hormones, amino acids, and other biochemicals that mix and match in an embryo in order to develop its sexual characteristics. What I learned years ago in school, that there are only XX and XY combinations for gender couldn't be further from the truth. Like everything else in Nature, there are many shades of gray. Nothing is black or white. What fascinated me was to find out that chemical reactions inside the uterus affect the embryo's sexual development in the future. It is almost as if to say that when the expectant mother has pistachio ice cream on a full moon and sleeps sideways, the baby (and therefore the adult) will prefer males. On the other hand, if she sunbathes at noon and wears cheap cologne, the baby will go for females. It is always the mother’s fault. LOL!
During the nine months I lived wrapped in placenta I had been expected by the family with two names: Carime or Vicente. In an era before the ultrasound, when baby showers were colorful affairs (not just blue or pink), the big secret was only revealed on L-day, the day of light. It is said I was born with a dark penis, whatever that means. The placenta was thrown away – and the possibility of stem cell salvation – and dressed on a yellow bodysuit I was given my Italian grandfather's name, not the Lebanese great-grandmother's. However, genetics is more powerful than we think. I am only 14% Italian and 21% Lebanese, so my love for mezzeh prevailed. You see, I really go far away on my thoughts during these walks around town.
The other podcast I listen to very attentively is History of Ideas, by Cambridge professor David Runciman. Each episode is about a book that defines a concept in today's society. They are dense and complex conversations such as "Rousseau on Inequality" or "Rosa Luxembourg and the Revolution''. I often feel very small amid such thinkers and wish I could comprehend every single word. But just being aware of these ideas (and ideals) is enough. What I ask myself is: what to do with this new knowledge? I can't "unknow" things as much as I can't "unsee" things. So I keep on walking.
I wish I could "unwatch" Adam Curtis' 6-part documentary on BBC called "Can't Get You Out of My Head", based largely on Mark Fisher's book "Capitalist Realism". It was too much for a lockdown season. It makes for a gloomy future unless we undo things – undoing is possible – or do things differently. I watched them on YouTube and got quite curious as to why episode 5 was taken down from the platform. Too much conspiracy? If you enjoy conspiracies with a very light touch, I also recommend Netflix's "Madame Claude", a French movie about the life of a famous Parisian madame in the late 1960s. I wish I could have been one of her girls in those days. I just would not have smoked so much.
Talking about sex and money, the movie reminded me I have already been paid for sex. It was in Taipei, Taiwan. I met an EVA Air pilot, he came over to my hotel full of interesting fantasies. I have always been very open to sexual fantasies and decided to play along. First, he wanted us both to be naked while he smoked a strange pipe and blew smoke all over me. I just laid on the bed, looking at the mirror and trying not to laugh while being smoked like a trout. Afterward, he said he wanted to pay me so he would feel more comfortable with the whole situation. Why not? My geisha training at Emirates taught me to always comply in such situations. He offered me 150 bucks but he didn't have enough local currency. He left promising to pass by the reception's ATM and bring me the remaining 30 dollars. He never returned. Maybe because he could not have a hard-on. I bought a pair of Crossfit shoes with the money and never ate smoked fish again. Nor did I fly EVA Air.
As one story goes into the next one and we are in the Far East I have to mention one of the books I've been reading, by the Belgian writer Amélie Nothomb. She was born in Japan. When she was 5 years old she moved with her diplomat parents to Beijing. The descriptions of 1970s Beijing from the point of view of a child are hilarious – and so interesting when thinking of today's Beijing. From China, the family moved to New York. The chapter about her arrival in the Big Apple sent me years back, to the very day I first saw Manhattan's skyline from the windows of a yellow cab on the way from JFK. I was 12. She was 7. The book is called "The Life of Hunger" and I am enjoying it very much. I recommend all of her books. There is an excellent podcast called "Une Nuit en Librairie" (in French) where Nothomb is interviewed. She is great.
Another book I've been reading is the last of Karl Ove Knausgard's "My Struggle", from Norway. I enjoy it, albeit right now it has been a bit of a personal struggle as we are stuck in a small room in Sweden page after page after page and he is digressing about god knows how many issues. But I still enjoy his writing and just as Amélie Nothomb's, they share their personal life stories in different degrees of fictionalization. This makes me want to do the same. I could share my adventures around the world, from being kidnapped in China to discovering the pleasures of Parisian saunas. How was it to leave home at 19 and move to weird Switzerland, the first job in London, the sleazy life in Dubai. With the right amount of fiction, the stories could become even juicier. I even thought of the book's epigraph, taken from the song "La Chanson de Ziggy", part of Starmania, a French musical.
"Je vais leur raconter ma vie. Est-ce que tu crois que ça suffit, ta vie? Mais ma vie, tu la connais pas". (I will tell them my life. Do you think your life is enough? But my life, you don't know it). Wow… I can't wait! Save this space!
In my literary orgies – I am a man of many writers, of many lovers – there's also space for a Brazilian diva, Clarice Lispector. I love spreading the books over my bed or sofa to have a wonderful ménage. A paragraph from Lispector at yesterday's session called "If I were me" struck me and I share it here in my own translation. I hope she is not turning around in her tomb in disgrace.
When I don't know where I've kept an important piece of paper and its search is useless, I ask myself: if I were me and I had an important piece of paper, which place would I choose? Sometimes it works. Many other times I remain so pressed by the sentence "if I were me", that the search for the piece of paper becomes secondary, and I start thinking. Better said, feeling.
And I don't feel good. Try it: if you were you, how would it be what you would do? From the start there is an embarrassment: the lie with which we accommodate ourselves has just been slightly moved from where it had long been accommodated. However, I've read biographies of people who suddenly became who they really were, and their life changed completely. I think if I were really me, friends would not greet me on the street because even the way I look would have changed. How? I don't know.
Half of the things I would do if I were me, I can't tell. I think, for example, that for a certain reason I would be locked up in jail. If I were me, I would give away what is mine, and I would trust the future into the future.
"If I were me" seems to represent our biggest living fear, and seems to be the new unknown road. However, I have the intuition that, getting over the first so called craziness of the joy it would be, we would finally experience the world. I know well, we would experience in full all of the pain in the world. And our pain, the one we've learned not to feel. But we would also be taken aback in an ecstasy of pure and legitimate happiness that is hard to guess. No, I think I already, in a certain way, am guessing because I felt myself smiling and I also felt a kind of shame one has when facing what is too big to fathom (from Clarice Lispector - Todas as Crônicas - Ed. Rocco 2018 translated by Vicente Frare).
Thank you for reading. If you still have some energy left, there is a new short story called "Wanderer – Andarilho" at TravelVince (in Portuguese however, but you can read with the Translate button at the bottom of the page). If you could subscribe and share this newsletter, I will be forever grateful. I already have a full list of confessions for the next one. Take care and see you soon.
Vicente
I'll tell you what, your writing is getting better at each post. Keep it up. Great story telling. Love Huberman lab. And speaking of the world trade center, watch "The Looming Towers".
Show Querido Vi....continúe escrevendo sobre si mesmo...adorei!!!! Beijão primo🥰🥰