TravelVince News #39
🚶🏻♂️Vagamundo transcontinental parte 2 | Intercontinental wanderer part 2 🇲🇦 🇪🇸
For English, please scroll down to 🇬🇧. Thanks!
Alguns lugares despertam minha curiosidade só pelo nome: Tânger, Ceuta, Gibraltar. Tão próximos e, ao mesmo tempo, tão distintos, eles se encaixam naturalmente em uma única viagem. Já pertenceram ao mesmo reino em diferentes períodos da história, mas hoje estão separados por fronteiras mais complexas do que as águas do Mediterrâneo que os dividem.
Tânger, na ponta norte da África, é um ponto de passagem de civilizações há milênios. Minha fascinação pela cidade começou ao ler O tempo entre costuras, da espanhola María Dueñas (tem também uma série na Netflix). O livro retrata Tânger como um mosaico vibrante de culturas, espiões, contrabandistas, refugiados e idiomas. Tudo reunido em um só lugar. Até 1956, Tânger era uma Zona Internacional, uma espécie de terra de ninguém que atraiu escritores e andarilhos como Paul Bowles, Tennessee Williams e William Burroughs. Um dos meus personagens históricos favoritos, Ibn Batuta, que viajou pelo mundo islâmico duas vezes mais que Marco Polo e é considerado um dos primeiros cronistas de viagem, nasceu ali. Visitar seu túmulo foi como uma peregrinação ao próprio peregrino.
Cheguei à cidade no trem-bala vindo do aeroporto de Casablanca, com uma parada em Rabat, antes de me refugiar em um hotel dos anos 1950 no centro histórico congelado no tempo. Os cafés e restaurantes pareciam cenários de cinema. Dava para ver a Espanha do outro lado do estreito, e fiquei imaginando os barcos que traziam os últimos refugiados muçulmanos de Al-Andalus durante a Reconquista Católica, em 1492. Entre eles estava o sultão Boabdil, que chorou ao se despedir de Granada. Antes disso, em 1471, os portugueses já testavam suas estratégias de conquista com incursões em Tânger e Ceuta, meu próximo destino.
Ceuta fica a apenas 45 minutos de Tânger, por uma estrada íngreme e sinuosa. Embora minúscula, a cidade espanhola se impõe com seus muros de concreto, arame farpado e torres de vigilância que avançam sobre o território marroquino. A travessia da fronteira é feita a pé, passando por imigração e alfândega. Carimbo no passaporte e pronto. Bem-vindo à União Europeia. Um trajeto curto, mas um salto para outra realidade.
Ceuta já foi portuguesa, mas no vai e vem entre Lisboa e Madri, acabou ficando com a Espanha. A entrada no enclave se dá pelas muralhas do forte, e a avenida à beira-mar poderia muito bem ser em Marbella ou Palma de Maiorca. Não há muito o que ver ou fazer. É um lugar para simplesmente estar. Um desses pontos anacrônicos, vestígios do tempo de impérios. Pelo menos há os confortos europeus: sinal de celular incluído no meu plano, euros, Mercadona, Zara, pan con tomate, helado de turrón — e muitos soldados bonitos.
Para chegar à Espanha continental, peguei um ferry até o porto de Algeciras. A segurança é reforçada por conta do tráfico humano e da imigração ilegal, afinal, uma vez em solo europeu, o espaço Schengen permite que qualquer um suma do radar. Fui farejado por cães, revistado três vezes, e precisei explicar aos oficiais as intenções de um brasileiro vindo do Marrocos. Mas nada além disso. Assim que o barco atracou, corri para pegar o ônibus em direção à Línea de la Concepción, uma cidade onde uma linha reta separa a Espanha do Reino Unido.
Gibraltar tem um formato curioso. É um rochedo colossal “ancorado” no continente, como se uma mão gigante o tivesse colocado ali. Na mitologia grega, um dos doze trabalhos de Hércules foi abrir uma fenda para que o Atlântico inundasse o que hoje é o Mediterrâneo. Foi justamente o penhasco de Gibraltar que ele usou como apoio. Atualmente, todas as ruas e estruturas da colônia britânica estão penduradas no morro. Não há como se locomover sem subir ou descer rampas e degraus — muitos degraus.
A Espanha cedeu Gibraltar ao Reino Unido em 1713, após uma das tantas guerras entre os países. Cedeu, mas se arrependeu. Até hoje pede a devolução. Como os ingleses não devolvem, os espanhóis adoram dificultar as coisas. Franco, por exemplo, fechou a fronteira em 1969. Ela só reabriu em 1985. Tudo precisava chegar de barco, direto de Londres. Achei que meu hotel fosse perto do mar. No mapa do celular ele aparecia a quatro quadras da orla. Mas, na prática, ele ficava no alto de uma colina, bem acima do nível do mar. Um teleférico passava bem em frente à minha sacada, rumo ao topo do morro. É claro que subi para admirar a vista. Lá em cima vive uma banda de macacos que passa o dia catando piolhos uns nos outros.
Achei Gibraltar fascinante. Mais uma dessas idiossincrasias europeias ao estilo de Liechtenstein, Mônaco, San Marino ou Vaticano. Confesso que me deu um pouco de agonia, por ser tudo muito apertado e exigir bastante energia para qualquer programa. Até sair para tomar um sorvete precisa-se preparo físico e coxas firmes. Tive tempo de me recuperar durante as cinco horas de ônibus até Sevilha, onde visitei a Feria de Abril, um evento tão animado quanto o Carnaval, abraçado com entusiasmo pelos sevilhanos. Me senti a única pessoa na cidade sem leque, castanholas, cavalo ou charrete.
Sempre adiante, nos passos de Ibn Batuta, cheguei finalmente a Lisboa, onde fui acolhido pelo conforto da língua e pelo abraço de amigos brasileiros. Lavei as roupas, alonguei os músculos, e dias depois parti para a caminhada que narrei na newsletter #38. Do aeroporto de Casablanca (voo vindo de São Paulo) ao aeroporto do Porto (voo de volta pro Rio), com trens, táxis, barcos, ônibus e muitos quilômetros a pé, me senti realizado e ainda mais viciado nesse tipo de viagem em que me torno parte da paisagem.
Até julho.
Para saber mais:
📚A mão de Fátima - Ildefonso Falcones
📚O último suspiro do Mouro - Salman Rushdie
📚🎬O tempo entre costuras - María Dueñas
🎬O céu que nos protege - Bernardo Bertolucci
🎬Babel - Alejandro González Iñarrítu
🇬🇧 Some places stir my curiosity by name alone like Tangier, Ceuta, Gibraltar. So close together, yet so distinct, they’re destinations that naturally align into one journey. United under the same kingdom multiple times, today they’re separated by borders more intricate than the waters of the Mediterranean that divide them.
Tangier, perched on the northern tip of Africa, has been a crossroads of civilizations for millennia. I first became fascinated with the city while reading The Time in Between by Spanish author María Dueñas (there’s also a Netflix series). The novel paints Tangier as a swirling mosaic of cultures, spies, smugglers, refugees, and languages, all converging in a single city. Until 1956, it was an International Zone, a liminal place that attracted writers and vagabonds like Paul Bowles, Tennessee Williams, and William Burroughs. One of my favorite historical figures, Ibn Battuta, who traveled twice as far as Marco Polo and is considered one of the first travel writers, was born there. Visiting his tomb felt like a pilgrimage to the pilgrim himself.
I arrived via high-speed train from Casablanca’s airport, with a stop in Rabat, before retreating to a 1950s-era hotel in the historic center frozen in time. The restaurants and cafés looked like a movie set. From the coast, I could see Spain across the strait and imagined the boats that once carried the last Muslim refugees from Al-Andalus during the Catholic Reconquista of 1492. Among them was Sultan Boabdil, who famously wept as he left Granada. Before that, in 1471, the Portuguese had already begun their conquests with raids on both Tangier and Ceuta, my next stop.
Ceuta lies just 45 minutes away via a steep, winding road. Though tiny, the Spanish enclave looms large with its concrete walls, barbed wire, and watchtowers that protrude into Moroccan territory. You must cross immigration and customs on foot. Passport stamped, I stepped into the European Union. A short journey, but a leap into a different world.
Ceuta was once Portuguese, but in the tug-of-war between Lisbon and Madrid, it eventually landed with Spain. Entry is through the fortress walls, and the seaside promenade could easily pass for Marbella or Palma de Mallorca. There’s little to do or see. It’s a place simply to be. One of those historical anomalies, a remnant of empire. Still, it offered some European comforts: mobile coverage on my plan, euros, Mercadona, Zara, pan con tomate, helado de turrón and plenty of handsome military men.
To reach mainland Spain, I took a ferry to Algeciras. Security was tight due to human trafficking and illegal immigration. Once across, the EU’s open borders make it easy for anyone to vanish. I was sniffed by dogs, unpacked my backpack three times, and had to clarify to the officers the intentions of a Brazilian traveling from Morocco. Nothing major. Once docked, I rushed to catch a bus toward La Línea de la Concepción, a town where a simple line separates Spain from the United Kingdom.
Gibraltar is strange in shape: an enormous rock “moored” to the continent, as if a giant hand had dragged it into place. In Greek mythology, one of Hercules’ labors was to split the mountains and let the Atlantic flood what is now the Mediterranean. Gibraltar’s cliff was his lever. Today, all the colony’s streets and buildings cling to that massive hill. You can’t get around without climbing ramps, stairs, and more stairs.
Spain ceded Gibraltar to Britain in 1713 after one of their many wars. But it’s a loss Spain never got over. To this day, they petition for its return. Franco even closed the border in 1969; it didn’t reopen until 1985. Back then, everything had to arrive by boat from London. I had assumed my hotel was near the shore. It looked just four blocks from the sea on the map. In reality, it sat high atop a hill, well above sea level. A cable car passed right outside my window, heading up to the summit. Naturally, I went there for the view. At the top lives a band of monkeys who spend their days grooming each other.
I found Gibraltar fascinating. Another one of Europe’s oddities like Liechtenstein, Monaco, San Marino, or the Vatican. It did give me a touch of claustrophobia, though. Everything’s packed in, and even the simplest outing, like getting an ice cream, demands stamina and strong legs. I recovered during the five-hour bus ride to Seville, where I visited the Feria de Abril, a festival as lively as Carnival. The Sevillians throw themselves into it with passion. I felt like the only person in the city without a fan, castanets, a horse, or a carriage.
Still moving forward, in the spirit of Ibn Battuta, I finally arrived in Lisbon, where I was embraced by the familiarity of the Portuguese language and the warmth of Brazilian friends. I did laundry, stretched my legs, and a few days later, set off on the 300km-walk described in newsletter #38. From Casablanca airport (after a flight from São Paulo) to Porto airport (en route to Rio), with trains, taxis, ferries, buses, and countless kilometers on foot I felt fulfilled and more addicted than ever to these journeys where I become part of the landscape.
See you in July.
Eu espero ansiosa as aventuras de viagens!! Demais, Vicente! 👏👏
Show de narrativa. Abração